terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Sophia de Mello Breyner Andresen - breve biografia

Sophia retratada por Arpad Szenes

Sophia de Mello Breyner Andresen nasce a 6 de Novembro de 1919 no Porto, onde passa a infância. Entre 1936 e 1939 estuda Filologia Clássica na Universidade de Lisboa. Publica os primeiros versos em 1940, nos Cadernos de Poesia. Casada com Francisco Sousa Tavares, passa a viver em Lisboa. Tem cinco filhos.

Participa ativamente na oposição o Estado Novo e é eleita, depois do 25 de Abril, deputada à Assembleia Constituinte.

Autora de catorze livros de poesia, publicados entre 1944 e 1997, escreve também contos, histórias para crianças, artigos, ensaios e teatro. Traduz Eurípedes, Shakespeare, Claudel, Dante e, para o francês, alguns poetas portugueses.

Recebeu, entre outros, o Prêmio Camões 1999, o Prêmio de Poesia Max Jacob 2001 e o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana 2003.


Por delicadeza

Bailarina fui
Mas nunca dansei
Em frente das grades
Só três passos dei

Tão breve o começo
Tão cedo negado
Dansei no avesso
Do tempo bailado

Dansarina fui
Mas nunca bailei
Deixei-me ficar
Na prisão do rei

Onde o mar aberto
E o tempo lavado?
Perdi-me tão perto
Do jardim buscado

Bailarina fui
Mas nunca bailei
Minha vida toda
Como cega errei

Minha vida atada
Nunca a desatei
Como Rimbaud disse
Também eu direi:

«Juventude ociosa
Por tudo iludida
Por delicadeza
Perdi minha vida»

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Nota: aqui, mais uma vez, a poeta grafa a palavra "dançar" e seus derivados com a letra"s": "dansei"

Com este poema extremamente autobiográfico encerro minha seleção de O Nome das Coisas, de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Espero que tenham gostado!


A forma justa


Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse – proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
- Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Regressarei

Eu regressarei ao poema como à pátria à casa
Como à antiga infância que perdi por descuido
Para buscar obstinada a substância de tudo
E gritar de paixão sob mil luzes acesas

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Oásis


Penetraremos no palmar
A água será clara o leite doce
O calor será leve o linho branco e fresco
O silêncio estará nu – o canto
Da flauta será nítido no lido
Da penumbra

Lavaremos nossas mãos de desencontro e poeira

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Os erros

A confusão a fraude os erros cometidos
A transparência perdida – o grito
Que não conseguiu atravessar o opaco
O limiar e o linear perdidos

Deverá tudo passar a ser passado
Como projecto falhado e abandonado
Como papel que se atira ao cesto
Como abismo fracasso não esperança
Ou poderemos enfrentar e superar
Recomeçar a partir da página em branco
Como escrita de um poema obstinado?

1975

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

A casa térrea


Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo que não soubeste ser
Que não seja transferência nem refúgio
Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja
A verdade do teu inteiro estar terrestre

Então construirás a tua casa na planície costeira
A meia distância entre montanha e mar
Construirás – como se diz – a casa térrea –
Construirás a partir do fundamento

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Liberdade


O poema é
A liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba –
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos


(Sophia de Mello Breyner Andresen)

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Breve encontro

Este é o amor das palavras demoradas
Moradas habitadas
Nelas mora
Em memória e demora
O nosso breve encontro com a vida

(Sophia de Mello Breyner Andresen)


Enquanto longe divagas

I

Enquanto longe divagas
E através de um mar desconhecido esqueces a palavra
- Enquanto vais à deriva das correntes
E fugitivo perseguido por inomeadas formas
A ti próprio te buscas devagar
- Enquanto percorres os labirintos da viagem
E no país de treva e gelo interrogas o mudo rosto das sombras
- Enquanto tacteias e duvidas e te espantas
E apenas como um fio te guia a tua saudade da vida
Enquanto navegas em oceanos azuis de rochas negras
E as vozes da casa te invocam e te seguem
Enquanto regressas como a ti mesmo ao mar
E sujo de algas emerges entorpecido e como drogado
- Enquanto naufragas e te afundas e te esvais
E na praia que é teu leito como criança dormes
E devagar devagar a teu corpo regressas
Como jovem toiro espantado de se reconhecer
E como jovem toiro sacodes o teu cabelo sobre os olhos
E devagar recuperas tua mão teu gesto
E teu amor das coisas sílaba por sílaba


II

O meu amor da vida está paralisado pelo teu sono
É como ave no ar veloz detida
Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso


III

Pois no ar estremece tua alegria
- Tua jovem rijeza de arbusto –
A luz espera teu perfil teu gesto
Teu ímpeto na fuga e desafio
Tua inteligência tua argúcia teu riso

Como ondas do mar dansam em mim os pés do teu regresso

Junho de 1974

Nota: No último verso, lê-se "dansam". A grafia foi escolhida pela autora. Este mesmo "trocadilho" será visto mais adiante em outro poema, Por delicadeza.


Com fúria e raiva

El Roto / El Paris / El Demagogo

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Junho de 1974

(Sophia de Mello Breyner Andresen)


Paráfrase

Odisseia, 12. 17-28
Papiro séc. III-II a.C. - Egito

«Antes ser na terra escravo de um escravo
Do que ser no outro mundo rei de todas as sombras»
Homero, Odisseia

Antes ser sob a terra abolição e cinza
Do que ser neste mundo rei de todas as sombras

(Sophia de Mello Breyner Andresen)


O Palácio

Templo de Cnossos - O palácio do Minotauro

Era um dos palácios do Minotauro
- O da minha infância para mim o primeiro –
Tinha sido construído no século passado (e pintado a vermelho)

Estátuas escadas veludos granito
Tílias o cercavam de música e murmúrio
Paixões e traições o inchavam de grito

Espelhos ante espelhos tudo aprofundavam
Seu pátio era interior era átrio
As suas varandas eram por dentro
Viradas para o centro
Em grandes vazios as vozes ecoavam
Era um dos palácios do Minotauro
O da minha infância – para mim o vermelho

Ali a magia como fogo ardia de Março a Fevereiro
A prata brilhava o vidro luzia
Tudo tilintava tudo estremecia
De noite e de dia

Era um dos palácios do Minotauro
- O da minha infância para mim o primeiro –
Ali o tumulto cego confundia
O escuro da noite e o brilho do dia
Ali era a fúria o clamor o não-dito
Ali o confuso onde tudo irrompia
Ali era o Kaos onde tudo nascia

(Sophia de Mello Breyner Andresen)


Guerra ou Lisboa 72

Partiu vivo jovem forte
Voltou bem grave e calado
Com morte no passaporte

Sua morte nos jornais
Surgiu em letra pequena
É preciso que o país
Tenha a consciência serena

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Che Guevara


Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece

Lisboa, 1972

Para Arpad Szenes

Les Sables - Arpad Szenes

Assim a luz ao madrugar liberta
E uma se multiplica
Para inventar o espanto o alvoroço a festa
Do reino revelado

Oásis e palmar – distância justa
Atenta invenção do que foi dado
O pintor pinta no tempo respirado
Reconhece o mundo como um rosto amado

Pinta as longas extensões as longas lisas linhas
O caminhar comprido da terra e suas crinas

Pinta o quadro dentro do qual o quadro
Se tece malha a malha como em tear a teia
O outro quadro do quadro convocador convocado
Pinta o bicho egípcio os dedos da palmeira

Assim a luz ao madrugar liberta
A ternura funda nossa aliança com as coisas
Eis o mito solar a fina mão do trigo o bicho grego

O amor que move o sol e os outros astros
- Como o Dante Alighieri disse –
Move e situa o quarto o dia o quadro

(Sophia de Mello Breyner Andresen)


Cíclades


(evocando Fernando Pessoa)

A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença
O teu nome emerge como se aqui
O negativo que foste de ti se revelasse

Viveste no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Viúvo de ti próprio
Em Lisboa cenário da vida
E eras o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria
O empregado competente de uma casa comercial
O frequentador irónico delicado e cortês dos cafés da Baixa
O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo

(Onde ainda no mármore das mesas
Buscamos o rastro frio das tuas mãos
- O imperdoável dedilhar das tuas mãos)

Esquartejado pelas fúrias do não-vivido
À margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
Com meticulosa exactidão desenhaste os mapas
Das múltiplas navegações da tua ausência –
Aquilo que não foi nem foste ficou dito
Como ilha surgida a barlavento
Com prumos sondas astrolábios bússolas
Procedeste ao levantamento do desterro

Nasceste depois
E alguém gastara em si toda a verdade
O caminho da Índia já fora descoberto
Dos deuses só restava
O incerto perpassar
No murmúrio e no cheiro das paisagens
E tinha muitos rostos
Para que não sendo ninguém dissesses tudo
Viajavas no avesso no inverso no adverso

Porém obstinada eu invoco – ó dividido –
O instante que te unisse
E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste

Estes são os arquipélagos que derivam ao longo do teu rosto
Estes são os rápidos golfinhos da tua alegria
Que os deuses não te deram nem quiseste

Este é o país onde a carne das estátuas como choupos estremece
Atravessada pelo respirar leve da luz
Aqui brilha o azul-respiração das coisas
Nas praias onde há um espelho voltado para o mar

Aqui o enigma eu me interroga desde sempre
É mais nu e veemente e por isso te invoco:
«Porque foram quebrados os teus gestos?
Quem te cercou de muros e de abismos?
Quem derramou no chão os teus segredos?»

Invoco-te como se chegasses neste barco
E poisasses os teus pés nas ilhas
E a sua excessiva proximidade te invadisse
Como um rosto amado debruçado sobre ti

No estio deste lugar chamo por ti
Que hibernaste a própria vida como o animal na estação adversa
Que te quiseste distante como quem ante o quadro pra melhor ver recua
E quiseste a distância que sofreste

Chamo por ti – reúno os destroços as ruínas os pedaços –
Porque o mundo estalou como pedreira
E no chão rolam capitéis e braços
Colunas divididas estilhaços
E da ânfora resta o espalhamento de cacos
Perante os quais os deuses se tornam estrangeiros

Porém aqui as deusas cor de trigo
Erguem a longa harpa dos seus dedos
E encantam o sol azul que te invoco
Onde invoco a palavra impessoal da tua ausência

Pudesse o instante da festa romper o teu luto
Ó viúvo de ti mesmo
E que ser e estar coincidissem
No um da boda
Como se o teu navio te esperasse em Thasos
Como se Penélope
Nos seus quartos altos
Entre seus cabelos te fiasse

1972

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Sophia de Mello Breyner Andresen e seus poemas em O Nome das Coisas

Sophia de Mello Breyner Andresen é uma poeta engajada. Seus escritos não possuem o romantismo melancólico de uma Florbela Espanca, mas nem por isso deixam de ser tocantes.

Os poemas de Sophia são quase que autobiográficos, acompanham a história da poeta e mostram-nos seu mundo, seus medos e seus desejos. Falam-nos de suas frustrações e sonhos, de sua busca por uma humanidade melhor e mais justa.

Inicio a seleção pelo primeiro poema do livro O Nome das Coisas, em que Sophia envoca Fernando Pessoa, como se o quisesse acordar.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Próxima semana...



Sophia de Mello Breyner Andresen

e o livro

O Nome das Coisas


Para abrir o apetite:


Assim a luz ao madrugar liberta
E uma se multiplica
Para inventar o espanto o alvoroço a festa
Do reino revelado
(...)

Mini-biografia de Craveirinha no final de Karingana ua Karingana

Imagem: Craveirinha, de Júnior Lopes

José João Craveirinha
28.5.1922 – 6.2.2004 – Poeta Moçambicano

Os seus restos mortais repousam na cripta da Praça dos Heróis, em Maputo, capital de Moçambique.

Sendo um autodidacta, exerceu a profissão de jornalista, tendo usado vários pseudónimos, designadamente, José Mangachane, Mário Vieira, J.C., Jesuíno Cravo, Abílio Cossa, António Sousa.

Iniciou a sua profissão como jornalista no O Brado Africano e posteriormente trabalhou e colaborou, respectivamente, no Notícias, Notícias da Tarde, A Tribuna, A Voz de Moçambique, Notícias da Beira, Voz Africana, O Cooperador, Revista Nova e Revista Tempo.

Foi funcionário público, desportista, associativista, ensaísta e folclorista. Na década de 50 desempenhou um papel de relevo na Associação Africana, chegando a ser Presidente desta agremiação no início dos anos 60.

Recebeu importantes prémios dos quais se destacam «Prémio Alexandre Dáskalos» (1962), «Prémio Nacional de Itália» (1975), «Prémio Lótus» (1983), «Prémio Camões» (1991), tornando-se o primeiro autor africano a ser galardoado com o prémio mais importante da Língua Portuguesa, «Prémio Voice of Africa» da Ordfront Publishing House (Suécia, 2002).

Foi o primeiro moçambicano a ser agraciado com o título Doutor Honoris Causa pela Universidade Eduardo Mondlane em 2002.




Mesmo de rastos


Para o F. Couto

Mesmo depois
eu quero que me escutem
na razão da minha voz insepulta
e viril como um punhal.

E que a terra apenas cubra
a memória dos gestos inconclusos
e não o sopro incontido
dos gritos que eu gritar
no túrgido silêncio das manhãs
carregadas do mênstruo com que nascem.

E
na sensualidade da minha voz insepulta
ou na paz dos metacarpos cruzados
eu quero que me oiçam
sintam inteiro
e vejam rebelde e nu
como sou.

E ao ácido sabor do fruto imaturo
irei à conquista do horizonte dos astros
enquanto nos dedos o aroma
é da mão que colheu a flor
olhos num céu que não se vende
mas vê-se em nacos inteiros
azuis mesmo de rastos.

Que na minha humana condição
a morrer insubmisso
e a gritar vou
como as ondas que nascem das ondas do mar
e morrem para se renovar.


(José Craveirinha)

Com este poema em jeito de despedida, termino a seleção dos (que julguei) melhores de Karingana ua Karingana.

Espero que Craveirinha continue a ser ouvido, como pede neste poema, que, imagino, tenha dedicado a Fernando Couto, pai de Mia Couto.


Fraternidade das palavras


O céu é
uma m’benga
onde todos os braços das mamanas
repisam os bagos de estrelas.

Amigos:
as palavras mesmo estranhas
se têm música verdadeira
só precisam de quem as toque
ao mesmo ritmo para serem
todas irmãs.

E eis que num espasmo
de harmonia como todas as coisas
palavras rongas e algarvias ganguissam
neste satanhoco papel
e recombinam em poema.
(José Craveirinha)

Reza, Maria!


À minha mulher

Suam no trabalho as curvadas bestas
e não são bestas
são homens, Maria!

Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
e não são cães
são seres humanos, Maria!

Feras matam velhos, mulheres e crianças
e não são feras, são homens
os velhos, as mulheres e crianças
são os nossos pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

Crias morrem à míngua de pão
vermes nas ruas estendem a mão à caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!

Bichos espreitam nas cercas de arame farpado
curvam cansados dorsos ao peso das cangas
e também não são bichos
mas gente humilhada, Maria!

Do ódio e da guerra dos homens
das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e todos os que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança.

Ah, Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as mãos
e reza, Maria!

(José Craveirinha)

Em quantas partes?


Em quantas partes se divide um grito
em quantos corações se parte uma terra
em quantos olhos se come o sol
e em quantos pães se mata um sonho?

E se uma mulher despida é sempre um desejo
mais aperfeiçoado do que todos os milagres
o que significa neste Mundo o miolo
de um pão obsceno às metades
na mesa de seis bocas?

E quanto é certo que um negro
dorme os velhos sonos tão completamente
só imitando outra pessoa a dormir quando já não pode
carregar um saco
ou levar o menino à escola
em quantas partes se divide um riquexó na ilha
em quantas partes se divide uma chávena de chá
em quantos sofás de mandioca se deita a filha mais nova
e em quantas partes se morde um bife de nervo
até ao delírio do osso no espaço tenro
do mundo na lua espetada num tronco
de imbondeiro no jantar engendrado no morto?

E neste poema em quantos trapos
se esconde o rei da fome de cada um
e levanta a cabeça o preciso
verso da fome de cada lei?

(José Craveirinha)

Quero ser tambor

Tambor está velho de gritar
ó velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

E nem flor nascida no mato do desespero.
Nem rio correndo para o mar do desespero.
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero.
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra.
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra.
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu!
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala.
Só tambor velho de sangrar no batuque do meu povo.
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Ó velho deus dos homens
eu quero ser tambor.
E nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.

Só tambor ecoando a canção da força e da vida
só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!

Oh, velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!


(José Craveirinha)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Hossanas ao Hôssi Jesus


Menino Hôssi:
Amamos em família a Paz
connosco desde o Verbo doutrinário
que Te emancipou na Cruz.
E do Teu nascimento
renovado ao calvário do Mundo
Ave-Mamana
sentimos os centuriões tingir
os seus extensos gládios
outra vez no panfletário
helicóptero das Tuas parábolas
Ámen!

Hôssi:
Coitados ainda ajoelhamos
algures de corpo inteiro no cimento
desmontados de repente
no vácuo flutuamos incógnitos
no miasma pagão do catecismo nuclear
pele de poentes num céu de bombas
e uma atrasada Galileia sem mambas
tóxicas de gás
oxalá!

Hôssi:
Nascemos já envelhecidos
razões nenhumas de Quissimusse
e inguavanas Madalenas arrependidas de nós
no dia Gólgota munhuanizado nas cantinas
Jerusalém banto exterior à igreja
sem fé nos estábulos Pânzer
e nos salmos recauchutantes
contra-fomes e auto-estradas
dai-nos o milho da mesma ceia
o barro o zinco e as estacas da mesma casa
e o perdão dos fariseus inocentes
emite-nos pela rádio-patrulha
renascido Messias no curso
de carpinteiro.

E preces
sementes deste Sol das coisas
ao Xipamanine sabes ali onde param os carros
bíblico Xicuembo um dos nossos não tenhas medo
Ave-Maria mamana do Redentor traído
dar de comer a quem tem mais comida
um livro ou um prato um prato ou um livro?
colher amendoim para quê ou fazer cana-de-açúcar
é doce então amar capataz mais do que a nós
dar de beber água a quem tem o champanhe todo
não mandar ninguém plantar algodão isso não
e despir ainda mais os nus que bom
na vilegiatura das praias no Inverno
nas gamboas das marés impropícias.

Jesus Hôssi:
Meninos-bonitos dormem
e nos berços vão sonecando
enquanto fazem os sonhos caber… senão!
no sapato da chaminé consta nunca vimos
na certeza de brinquedos eléctricos
que o paizinho por conta de Jesus
comprou no John Orr’s.

E quando uma aleluia
é três-ma-zona de machimbombo 7
do nosso Quissimusse ao Natal
o automóvel veloz a cordel
escudo a escudo até chegar ao chão
é hossana do carrilho de linhas
com chofer de Boas-Festas na areia
e nossos filhos ajudantes de mecânico de si mesmos
si mesmo com o brrrrrr!!!! dos motores de lábios
os tiros de escapes da boca que até cheiram óleo
de fome e os guiadores guinando o arame
na redenção da vitrina longínqua de prendas
meninos e meninas cá de fora a manobrar
os tais xitimela que já não fazem fumo
sacam os revólveres de plástico rápidos
e embalam as loiras de quinhentos e tal escudos
que fingem ó-ó e com voz de falsete
chamam «Mamã!... Mamã!» em português mesmo?

Meu Hôssi carpinteiro
hoje técnicos samaritanos crismam
de radioactividade as pombas e as crianças
e o céu já é dos astronautas também
e na síntese de neo-mandamentos
rezamos a deuses século vinte
o nosso xicombelo:
- Senhores centuriões do ar
ou patrões tanto faz
fazei chegar às cidades
mais supersónico o míssil
e dai-nos a vossa bênção
instantânea paranóica
ultra dos átomos
Ámen!

E humildade ao excesso
a claque do clube Jesus Cristo
lateja no circuito fechado
arena de todo o Mundo
Ámen outra vez!
E Jesus deste Quissimusse
perdoa-nos a ciência imprescindível
do brinde a uísque e ginger-ale traz a garrafa rapaz
ou só com água e gelo quantas pedras chega?
um Natal feliz de gambiarras tem que ser um pinheiro
nozes, amêndoas e figos dá ao moleque um pão
espuma de vinho espirituoso este é do bom
sujando a gravata desculpe foi sem querer
e o telefonema a avisar sem falta
que o namoro começa na missa do galo
Hip! Hip!
Hurra!

(José Craveirinha)

Ao Meu Belo Pai Ex-Imigrante

Pai:
as maternas palavras de signos
vivem e revivem no meu sangue
e pacientes esperam ainda a época da colheita
enquanto soltas já estão as tuas sentimentais
sementes de emigrante português
espezinhadas no passo de marcha
das patrulhas de sovacos suando
as coronhas de pesadelo.

E na minha rude e grata
sinceridade filial não esqueço
meu antigo português puro
que me geraste no ventre de uma tombasana
eu mais um novo moçambicano
semiclaro para não ser igual a um branco qualquer
e seminegro para jamais renegar
um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue.

E agora
para além do meu antigo amigo Jimmy Durante a cantar
e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha
subconsciência dos porquês de Buster Keaton sorumbático
achando que não valia a pena fazer cara alegre
e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa
ante os meus sócios Bucha e Estica no ecrã todo
e para sempre no zinco um tap-tap de cacimba no chão
a minha Mãe agonizando na esteira em Michafutene
enquanto tua voz serena profecia paternal: - «Zé:
quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém.»

Oh, Pai:
Juro que em mim ficaram laivos
do luso-arábico Aljezur da tua infância
mas amar por amor só amo
e somente posso e devo amar
esta minha única e bela nação do Mundo
onde minha Mãe nasceu e me gerou
e contigo comungou a terra, meu Pai.
E onde ibéricas heranças de fados e broas
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias
e o teu sangue se moçambicanizou nos torrões
da sepultura do velho emigrante numa cama do hospital
colono toa pobre como desembarcaste em África
meu belo Pai ex-português.

Pai:
O Zé de cabelos crespos e aloirados
não sei como ou antes por tua culpa
o «Trinta-diabos» de joelhos esfolados nos mergulhos
à Zamora nas balizas dos estádios descampados
avançado-centro de «bicicleta» à Leónidas no capim
mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas
embasbacado com as proezas dos leões do Circo Pagel
nódoas de caju na camisa e nos calções de caqui
campeão de corridas no xitututo Harley Davidson
os fundilhos dos calções avermelhados nos montes
do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores
para salvar a rapariga Maureen O’Sullivan das mandíbulas
afiadas dos jacarés do filme Tarzan Weissmuller
os bolsos cheios de tingolé da praia
as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã
do carro eléctrico e as mangas verdes com sal
sou eu, Pai, o «Cascabulho» para ti
o Sontinho para a minha Mãe
todo maluco de medo das visões alucinantes
de Lon Chaney com muitas caras.

Pai:
Ainda me lembro do teu olhar
e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade
ou teus versos de improviso em loas à vida escuto
e também lágrimas na demência dos silêncios
em tuas pálpebras revejo nitidamente
eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos
dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura
na dimensão desmedida do meu amor por ti
meu belo algarvio bem moçambicano!

E choro-te
chorando-te mais agora que te conheço
a ti, meu Pai, vinte e sete anos e três meses depois
dos carros na lenta procissão do nosso funeral
mas só Tu no caixão de funcionário aposentado
nos limites da vida
e na íris do meu olhar o teu lívido rosto
ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus
e na minha cabeça de mulatinho os últimos
afagos da tua mão trémula mas decidida sinto
naquele dia de visitas na enfermaria do hospital central.

E revejo os teus longos desejos no dirlim-dirlim da guitarra
ou o arco da bondade deslizando no violino da tua aguda tristeza
e nas abafadas noites dos nossos índicos verões
tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero
e eu ainda Ricardito, Douglas Fairbanks e Tom Mix
todos cavalgando aos tiros menos Tarzan analfabeto
e de tanga na casa de madeira-e-zinco
da estrada do Zichacha onde eu nasci.

Pai:
Afinal tu e a minha Mãe não morreram ainda bem
mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios
o Tarzan agente inglês disfarçado em África
e a Shirley Temple de sofismas nas covinhas da face
e eu também é que mudámos.
E alinhavadas palavras como se fossem versos
bandos de sécuas ávidas sangrando grãos de sol
no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção
para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços
agitados nas manhãs de bronze
chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias
almas esguias hastes espetadas nas margens das húmidas
ancas sinuosas dos rios.

E nestes versos te escrevo, meu Pai
por enquanto escondidos teus póstumos projectos
mais belos no silêncio e mais fortes na espera
porque nascem e renascem no meu não cicatrizado
ronga-ibérico mas afro-puro coração.
E fica a tua prematura beleza afro-algarvia
quase revelada nessa carta elegia para ti
meu resgatado primeiro extra-português
número UM Craveirinha moçambicano!

(José Craveirinha)

Uma Elegia a uma Mulher de Seis Anos

Uma vida de seis anos
somente
e os grandes olhos abertos para o mundo
preenchido pela voz de cocuana
· Zelina.

Uma vida de seis anos
uma vida
sem roliças bonecas fabricadas no estrangeiro
e embalando nos bracinhos magros
a sua boneca inteligente de carolo de milho
no dia da viagem comprida de cocuana Zelina
para as terras do medo e do mistério
das histórias de quizumbas
*
e guerreiros zulos
matando leões com azagaias.

Seis anos somente
chorando ao canto das fronteiras de caniço
uma esteira no chão
e o seu pequenino coração
asfixiado na incompreensão de vestirem
cocuana Zelina com a xicatauana de seda
a capulana nova de romagens encarnadas de mapsele
e também na cabeça branca de algodão
amarrarem o lenço verde de florinhas amarelas.

E deixaste, velha Zelina
na casinha de ripas do Xipamanine
uma mulher de seis anos a brincar
com a boneca inteligente de carolo de milho
e chorando ainda de olhos secos.

“Cocuana Zelina…! Oh… Cocuana Zelina…!”

E uma vida de seis anos
somente
ficou chamando o teu nome
na partida para sempre
no dia de sol em que flores foram para ti
e perfumaram o teu sono cocuana Zelina
e se deitaram contigo
na vala de um por dois da parcela
cavada em honra do teu repouso.

Mas também tu mulher de seis anos
lá ficaste
no asilo da velhice de cocuana Zelina
deitada no talhão reservado aos imóveis
cidadãos alforriados de costas
no subúrbio derradeiro.


(José Craveirinha)


· Cocuana: avó (Nota minha).
* Quizumba: fantasma (Nota minha).

Cântico do Pássaro Azul em Shaperville

Os homens magros como eu
não pedem para nascer
nem para cantar.
Mas nascem e cantam
que a nossa voz é a voz incorruptível
dos momentos de angústia sem voz
e dos passos arrastados nas velhas machambas.

E se cantam e nascem
os homens magros de olheiras fundas como eu
não pediram a blasfémia
de um sol que não fosse o mesmo
para uma criança banto
e o menino africâner.

Mas homens somos
e com o mesmíssimo encanto magnífico
dos filhos que geramos
aqui estamos
na vontade viril de viver o canto que sabemos
e tornar também uma vida
a vida de voluntário que não pedimos
nem queremos
e odiamos na ganga africana que vestimos
e na ração de farinha que comemos.

E com as sementes rongas
e as flores silvestres das montanhas zulos
e o doce pólen das metralhadoras no ar de Shaperville
um xitotonguana azul canta num braço de imbondeiro
e levanta no feitiço destes céus
a volúpia terrível do nosso voo.


23 de Março de 1960

(José Craveirinha)


quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Sementeira


Cresce a semente
lentamente
debaixo da terra escura.

Cresce a semente
enquanto a vida se curva no chicomo
*
e o grande sol de África
vem amadurecer tudo
com o seu calor enorme de revelação.

Cresce a semente
que a povoação plantou curvada
e a estrada passa ao lado
macadamizada quente e comprida
e a semente germina
lentamente no matope
imperceptível como um caju em maturação.

E a vida curva as suas milhentas mãos
geme e chora na sina
de plantar nosso suor branco
enquanto a estrada passa ao lado
aberta e poeirenta até Gaza
* e mais além
camionizada e comprida.

Depois
de tanga e capulana a vida espera
espiando no céu os agoiros que vão
rebentar sobre as campinas de África
a povoação toda junta do eucalipto grande
nos corações a mamba da ansiedade.

Oh, dia da colheita vai começar
na terra ardente
do algodão!

* Chicomo: enxada (N.A.)
* Esta Gaza de que Craveirinha fala não é a Gaza palestina. Aqui, em Moçambique, também existe um lugar com este mesmo nome. (Nota minha)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Orla azul da noite com mambas

Ouvir a lascívia
com tanto sangue na oração de lábios
e com tanto amor na chacina lilás das veias desde
as salivas secas aos magnetos manuais com fantásticos
colchões onde flutuar as espáduas apalpadas das virgens,
as cintas estalando-se no ardor magnífico
dos xipendanas bantos em comum
nos centros tocando a raiva
da estrela dos dois fazendo
este filho!

E as mais belas
missangas no resgate das mulheres
casadas rainhas eleitas dos mabandidos tombados
à esquina com tordos anestesiados a perfumes
de cajueiros com alguns de nós emboscados na orla
azul da noite com as mambas
aos gritos à rasca.

E o metal dos guizos
das correntes nas chagas dos tornozelos
no Setembro antigo das alcateias em viaturas
tombam os lobos abatidos a pragas de versos
e debelamos a lascívia das suas dentaduras no barro
ardente das panelas detonadas
à força dos vácuos
sem arroz!


Este poema me fez perder o fôlego. Inicialmente pelo seu ritmo compassado, regado pelas aliterações, mais tarde pelo seu conteúdo, que foi calando mais profundo à medida que relia e relia os versos.

Consternação do Nervo


Imagem: A Revolta da Terra-Mãe - Miguel d'Hera

O desejo
consolida a nossa máquina de entrar
ardente no casulo dos cabelos escondidos
das raparigas com arrepios
que também elas imaginam
o salitre de um homem
na paulatina carícia
do pescoço mordido.

Mas
no meu coração
em estado de sítio
minha raça-cão mija nas botas
destes homens de solas no caminho
e masca na boca a prateada fivela
das correias à volta das maxilas.

E a consternação
deste nervo incendeia as cruas
mãos imperecíveis na desbotada ganga
da noite ultriz excitada a mel e gritos
pão e água
e a ferro e fogo!

(José Craveirinha)

Nessa noite... Não!

Nem que viesses de rastos, Maria
os cabelos esparsos no meu peito
e os bicos das rosas de seios
contra os meus lábios duros...
nessa noite, não!

Nessa noite
eu e tu, Maria
só com os dedos bem crispados
nas cavilhas em metamorfoses dos tactos
em arco-íris de espasmos num petróleo de gritos
e a carne minha e tua sentindo na vigília
o frémito dos cinturões, Maria.

E as horas soando
no tenso latejar atormentado das veias
apenas o nosso amor apenas como um íman
crescendo nas ruas da cidade
crescendo
crescendo
para cerrar os dentes, Maria
e lutar!


Este é o primeiro poema de Karingana ua Karingana onde Craveirinha refere-se a sua esposa, Maria. Mais tarde, após a sua morte, o poeta publicaria um livro inteiro somente de poemas dedicados a ela, intitulado Maria.

Aparece aqui o tema da luta pela liberdade. A força do amor que existe entre o casal é canalizada para um amor maior, o amor à terra, à pátria. Maria sempre foi boa companheira, engajada na luta e nas idéias de Craveirinha.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Homem e Formiga


O homem
guiava a máquina no trabalho
suava a máquina no trabalho
suava e gritava nos andaimes
e a formiga
construía sem betoneira
silenciosamente
fraternalmente
sem complexos nem diplomas.

E enquanto o homem
invitaminado erguia
casas grandes de cimento e ferro
no chão crescia a obra colectiva
do insecto consciencializado.

E de betão armado
elevador e ar condicionado
para os brancos e negros
indianos
mulatos e chineses dos andaimes
com retratos obrigatórios
nas chapas das radiografias
as casas grandes razando as nuvens
não chegaram.

Mas no chão
o formigueiro bastou
a todas as formigas.

(José Craveirinha)


As interpretações deste poema são diversas, pelo menos no meu simples entender...

Numa primeira leitura, lembro de uma comparação entre o trabalho do operário, que trabalha para outros, e o trabalho da formiga, que trabalha para si.

Já numa segunda leitura, mais aprofundada e cuidada, podemos encontrar o tema do socialismo, numa mensagem que nos diz que o trabalho da formiga é coletivo e, por isso, consciencializado, enquanto o trabalho do homem é individual, uma vez que o fruto do trabalho humano é dirigido para um indivíduo em particular (o dono da casa).

Assim, surge a desigualdade social, na qual as construções dos homens, individualistas (capitalistas) não bastam para todos e as construções das formigas, coletivas (socialistas) são suficientes para todas as formigas.

Felismina


Com música
e jogo de luzes como nos circos
desabotoa-te lentamente, Felismina
desabotoa-te ao cúmulo das regras do cabaré
desabotoa-te Felismina.


Aqui na cidade
a cada milímetro do teu descaramento
vais evoluindo alvejada a focos na barriga
vais evoluindo cada vez mais nua
vais evoluindo com música e tudo
vais evoluindo de mamana mal vestida
em bem despida artista de strip-tease.
Com música da Europa
e jogo de luzes na tua nudez
vais evoluindo sem um único livro
vais evoluindo dentro deste circo
vais evoluindo Felismina!

Este é a primeira personagem que aparece neste livro. Como já foi dito por Calane da Silva, uma das inovações deste Karingana ua Karingana é que Craveirinha retrata gente do povo, que sofre com o colonialismo.

Felismina representa a mulher explorada, absorvida pelos costumes ocidentais, que "evolui" moldando-se a eles, que "evolui 'sem um único livro'".

Guerra


Aos que ficam
resta o recurso
de se vestirem de luto

..........................................
Ah, cidades!
Favos de pedra
macios amortecedores de bombas.

Este é, na minha opinião, um dos poemas mais marcantes do livro Karingana ua Karingana. É a representação do autor, ele mesmo um combatente da luta de libertação nacional, da dor trazida pela guerra que durante tantos anos assolou seu país.

Craveirinha sempre desejou um entendimento racional, uma conciliação que, mais tarde, acabou por vir e ainda hoje reina no país. Em Moçambique já há paz, mas as feridas da guerra ainda sangram quando uma mina escondida estoura sob os pés de um menino que brinca.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Os dois "Karingana ua Karingana"

Pela falta de espaço e também por respeito aos direitos autorais, fiz uma seleção de poemas deste livro, Karingana ua Karingana. Como critérios de seleção utilizei o valor estético e histórico, além do meu gosto pessoal, que (espero) todos compartilhem.

Inicio com os dois poemas que abrem o livro, referenciados já por Calane da Silva na Introdução.





Karingana ua Karingana


Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
- Karingana ua Karingana
é que faz o poeta sentir-se
gente.


E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
nem em plena vida se transforma
a visão do que parece impossível
em sonho do que vai ser.


- Karingana!







Karingana ua Karingana

De hora a hora
e minuto a minuto cresce
cresce devagarinho a semente na terra escura.
E a vida curva-nos mais ao ritmo fantástico
do nosso chicomo relampejante áscua de chanfuta
subafricano amadurecendo as jejuadas manhãs
ao velho calor dos braçais intensos
na lavra das lavras de uma lua
esfarrapada no meio do chão.


E a semente de milho cresce
cresce na povoação que a semeou com ternura
desidratada à preto nos sovacos da machamba
e a estrada passando ao lado vai-se abrindo
como uma mulher vai-se abrindo quente e comprida
aos beijos das rodas duplas da Wenela de cus
e dorsos a germinar os pesadelos dos mochos
bacilarmente
imperceptivelmente
desabrochando os profilácticos
férteis sudoríperos cereais em manuração.


E depois...
de capulanas e tangas supersticiosa a vida
vai espiando no céu os indecifráveis agoiros
que hão-de rebentar a nhimba da missava culimada
e na mórbida vigília dos ouvidos ao - Karingana
ua Karingana!? - todos juntos prescrutando a mafurreira
longínqua no horizonte e as mãos batendo a forja dos mil
sóis da tingoma dos corações enroscados de mambas
de ansiedade à luz da fogueira, respondendo - Karingana!


Oh! Os Xicuembos a chamar a chamar
nas facas de esmeraldas de milhos verticais na terrra!


Ah, o dia bom da colheita destes milhos de amor
e tédio vai começar e recomeçar nos inumeráveis chicomos
desalgodoando os algodões a mais sofisticados
de tractores que deviam estar e não estão.


2ª versão (29/2/51-63)

José Craveirinha - Karingana ua Karingana

José Craveirinha


Como disse na postagem anterior, vou iniciar esta viagem literária pelas vozes lusas pelo grande poeta José Craveirinha.
Escolhi um dos seus livros mais significativos - se bem que penso que todos seus livros são muito significativos - Karingana ua Karingana.
O interessante em Craveirinha é a sua capacidade de moldar a poesia como um retrato da vida. Cada livro seu representa um tempo diferente da sua existência. Costumo pensar que, se lermos todas suas publicações, em ordem cronológica, podemos dispensar a leitura de uma biografia sua.
Este que trago para cá hoje, Karingana ua Karingana, é seu segundo livro. O primeiro é Xibugo. Não pretendo aqui fazer a tal leitura cronológica da vida deste grande poeta, por isso a inconsistência de começar pelo segundo.
Sabendo que é importante começar pelo início, transcrevo a introdução à 1ª edição deste livro feita pela editora Alcance Editores, no ano passado. Esta introdução é feita por outro grande escritor, poeta, antropólogo, linguista, enfim, estudioso da vida e da língua lusa e moçambicana, Calane da Silva, do qual, com certeza, falaremos mais tarde.


ERA UMA VEZ UM POVO



Karingana wa Karingana[1]. Era uma vez um povo.

Era uma vez um povo dividido em etnias por um vasto território. Vencido pelo «ósculo do fogo», submetido e manietado acabou por ser vendido, explorado e doutrinado. Sombrios foram os tempos que lhe amordaçaram as palavras, mas grandes eram os sonhos para lhe libertarem a voz.

Era uma vez um povo, era uma vez um Homem.

Da mãe-terra e da mãe-útero ambos sorveram a água e o leite mítico e ancestral do chão generoso. Do próprio ocupante beberam as alfabetizadas sílabas, moçambicanizando-as pedra a pedra para a leitura-união do território, moçambicanizando-as milho a milho para as metáforas.

Dos rios e das montanhas, das savanas e das florestas, dos lagos e dos mares, dos estigmatizados subúrbios e das cidades divididas sangraram as tatuagens na carne e no espírito com o estilete aguçado da vida.

Era uma vez um cidadão, era uma vez um poeta.

Correu jovem nas futeboladas vitoriosas, transpirou nos espectaculares combates de boxe, aguentou as cargas da polícia e dos mabandido, trocou beijos do primeiro amor. Viajou pelo dorso dos húmidos e desesperados caniços suburbanos, enraivou pelas epidérmicas bofetadas dos preconceitos. Aguentou, tenaz, as grades lúgrebes que lhe quiseram silenciar a voz e o gesto.

Do país procurou os contornos geográficos da unidade, a clandestinidade organizativa, transformando os poemas em prática, guerrilha necessária para a liberdade. Do povo buscou todas as raízes, todos os medos, todos os anseios: dos túmulos dos heróis feitos deuses aos ossinhos mágicos dos tintlholos[2]; dos caminhos de água das canoas da tribo à luta centenária pelo país algemado.

Era uma vez um poeta cuja voz se funde com a história do seu povo e do seu país.

Ora, Karingana ua Karingana[3] é exactamente a história de um povo que, submetido pelo colonialismo que o fez pária e joguete na sua própria terra, tem pelo poeta José Craveirinha a pena épica e em riste que grita e que agita, que sofre e que denuncia, que odeia e que ama, que vibra de emoção por cada pequena grande vitória do moçambicano colonizado.

É um discurso em que, pela palavra inconformada e rebelde, o poeta tange a sua lira e apresenta os mais variados seres e tipos humanos do povo oprimido nas mais diversas situações do e no quotidiano, da sua luta pela sobrevivência em situações severas e precárias. Não deixa igualmente de cantar os frutos da terra, o canto e dança do povo das diversas etnias, a música, os heróis do dia-a-dia, assim como os emigrantes brutalizados nas minas do Rand e os próprios massacres perpetrados pelo «apartheid» então vigente no país vizinho de Moçambique, a África do Sul.

Enquanto em Xibugo – sua primeira obra – e como que um arauto – o poeta proclama o seu pan-africanismo, a sua negritude e a sua luta por uma identidade nacional, em Karingana ua Karingana, mantendo embora essas balizas identitárias marcadas por essas correntes ideológicas e sócio-culturais, Craveirinha anuncia que vai contar uma história «à maneira simples das profecias», a história do seu povo, melhor talvez, das gentes do seu povo, de tal modo que transformará «a visão do impossível / em sonho que há-de vir» (1ª ed. p. 3), ou seja, na liberdade que virá. Vaticínio do poeta.

Por conseguinte, tal como aconteceu em Xibugo, o poeta marca logo no primeiro e segundo poema, – ambos intitulados «karingana ua karingana[4]» – o conteúdo da obra, o que vai cantar, ou talvez, o que vai narrar na sua lírica pois, no segundo poema, é ainda mais explícito, embora metafórico, quando na estrofe inicial diz:

«De hora a hora
e minuto a minuto cresce
cresce devagarinho a semente na terra escura»
(…)

Se aqui se metaforiza a semente em germinação contínua como a liberdade que cresce, também na mesma estrofe o poeta dá testemunho do que está a acontecer com o seu povo quando continua anunciando:

(…) «A vida curva-nos mais ao ritmo fantástico
do nosso chicomo relampejante áscua de chanfuta
sub-africano amadurecendo as jejuadas manhãs
ao velho calor dos braçais intensos
na lavra das lavras de uma lua
esfarrapada no meio do chão»
(…)

Heroísmo no sofrimento cavado coma s mãos agarradas à enxada (chicomo), mãos de sobrevivência e mãos de luta que um dia deixarão de ser mãos subafricanas, quando a liberdade chegar e é por isso, também, que ainda se trabalha à enxada em vez de se charruar a terra com tractores, como acentua na última estrofe:

(…) «Ah, o dia da colheita destes milhos de amor
e tédio vai começar e recomeçar nos inumeráveis chicomos
desalgodoando os algodões a mais sofisticados
de tractores que deviam estar e não estão»
.

E este segundo «karingana ua karingana» esta datado – 1963 – por conseguinte, um ano antes do desencadeamento da luta armada de libertação nacional, pela recente criada e organizada Frente de Libertação de Moçambique de que o poeta já fazia parte como militante clandestino na capital e logo depois como comandante da frente armada do Sul. Aliás, é como tal que depois é preso e torturado pela então polícia política do regime português, a Pide.

Nesta ordem de acontecimentos e ideias podemos entender melhor o conteúdo e o próprio pragmatismo da poética craveirinhística, ou seja, o lado valorativo da cultura dos oprimidos, do grito dos desesperados, dos próprios instrumentos de trabalho que pela palavra do poeta se transformam também em armas de libertação. A partir do sofrimento e da dor, o poeta busca novas forças, transformando a desgraça em versos épicos e mobilizadores, em força consciencializadora da luta pela liberdade.

Efectivamente, a par de uma estilística que serve esses objectivos e que nos parágrafos seguintes iremos abordar, reafirmamos que, lado a lado com uma explorada dicotomia subúrbio/cidade, pobre/rico, branco/negro-mulato, luxo/exploração, opressão/liberdade, e também valorização da cultura bantu, do território nacional e da própria língua mestiça (luso-ronga), o poeta apresenta no todo de Karingana ua Karingana o lado épico, enaltecedor e glorificador do povo moçambicano em luta pela independência nacional[5].

Aflorando agora alguns aspectos estético-funcionais desta obra de José Craveirinha interessa desde já destacar que, estilisticamente, o poeta, tal como nos mostrou em Xibugo, continua um singular processo metafórico, quer ao nível dos nomes ou dos verbos, quer ao nível morfológico ou sintáctico-semântico com a utilização acrescentada de lexemas bantu, e que agora, e sobretudo, em Karingana ua Karingana, com neologismos luso-rongas, eivados muitas vezes de ironia e também de sarcasmo pela atitude e procedimentos dos agentes da ocupação, portanto contra aqueles que persistiam em perpetuar o sistema pelo seu lado mais brutal.

A este propósito podemos dizer que em Xibugo, que tem apenas 21 poemas, o poeta utilizou 146 lexemas bantu e apenas 5 neologismos luso-rongas para em Karingana ua Karingana, que tem 83 poemas, Craveirinha, usar um total de 112 lexemas bantu para um grande número de neologismos luso-rongas (41). Será que podemos tirar alguma outra leitura desta constatação aparentemente só numérica? Vamos tentar fazê-lo e, em parte, parafraseando-nos a nós mesmos uma vez que já em outros textos abordámos esta questão[6].

Assim, tendo em conta que, temática e estilisticamente, Xibugo, obra inicial do poeta é, fundamentalmente, pan-africanista e de negritude, não deixando também de ser fortemente nacionalista, e, tendo também em conta a própria vida do escritor que em traços largos mencionámos no início deste trabalho e no parágrafo sobre o advento da luta de libertação nacional, não temos dúvidas em afirmar que o poeta utilizou todo esse manancial de lexemas bantu e neologismos para vários fins ao mesmo tempo, conforme vamos detalhar.

Efectivamente, José Craveirinha quis impor uma estética diferente numa obra de língua portuguesa impregnada de uma mensagem ideológica e cultural subversiva em todos os domínios, quer temáticos, quer linguístico-poéticos.

A profusão de lexemas bantu, mais acentuados em Xibugo continuam a concentrar-se em Karingana em áreas como de nomes geográficos, da flora silvestre, da fauna bravia, das danças tradicionais guerreiras e não só, enquanto os neologismos, exíguos na primeira obra, nesta segunda alargam-se, em formas verbais e nominais, aos eventos etno-culturais, à profissão e acções dos trabalhadores explorados, às peças de vestuário, canções, pessoal da administração colonial, etc.

Ao contrário do que sucede em Xibugo, em Karingana ua Karingana não figura nenhum nome de herói nacional ou mítico, mas em contrapartida Craveirinha utiliza em inúmeros poemas (no texto lírico ou mesmo nos títulos, a eles dedicados) novos nomes comuns de homens e de mulheres das mais diversas condições sociais vítimas do colonialismo e que em termos temático-estéticos vale a pena aqui recordar.

Assim, aparecem nomes próprios como, por exemplo, Felismina (streep teaser), Mandevo (magaíza), Maria Sende (mulher contratada à força para o xibalo), Leta Conceição (prostituta), António (tio do poeta), Mangondo (estivador), Zelina (avó muito pobre), Mamana Saquina (mãe de um magaíza), Tingana (pobre tocador de viola de lata), Noémia de Sousa (primeira poetisa moçambicana militante da luta de libertação nacional), Cecília (pessoa sem identificação no poema), Maria João (pessoa conhecida do poeta), Joaquim (motorista de táxi), João Mendes (companheiro militante da luta de libertação) e Maria (esposa do poeta).

Por conseguinte, Karingana ua Karingana é a saga de apresentação para dignificação e chamada de atenção de pessoas simples do povo e não já as figuras emblemáticas e míticas da africanidade e heróis da etno-resistência ao colonialismo, como acontece em Xibugo. O herói aqui já não é o conjunto e as qualidades guerreiras dos chefes das etnias, mas, sobretudo, o povo anónimo que sofre directamente as agruras da exploração, ou indirectamente, as consequências do sistema colonial e ainda todos aqueles que na mata não se importam de morrer para conquistar a independência desse mesmo povo colonizado.

Ao finalizar não se pode dizer que esta segunda grande obra de José Craveirinha seja discriminatória em relação aos portugueses que viviam em Moçambique e aqui trabalhavam honestamente, pois ele os resgata a partir do próprio poema dedicado primeiro ao pai após a morte deste, e depois ao seu tio António.

O poeta sabe distinguir «os portugueses puros», aqueles que, como o seu pai e seu tio, que se pautavam pelo humanismo, pela igualdade e pelo respeito, daqueles outros que espezinham «no passo da marcha / das patrulhas de sovacos suando / as coronhas de pesadelo /» (poema «Ao Meu Belo Pai Ex-emigrante»); Craveirinha sabe distinguir e distingue as mulheres sacrificadas pela vida, as lutadoras indomáveis e silenciosas, assim como as heroínas internacionais como Valentina Tereskova, a primeira mulher cosmonauta, daquelas outras pessoas que se utilizam do sistema e da miséria para explorarem e alienarem cada vez mais as mulheres do país.

O mesmo temos a dizer estilisticamente em relação à língua portuguesa. Na verdade, José Craveirinha foi e é um amante da língua portuguesa, mas não admitia que os colonos depreciassem as línguas maternas moçambicanas de origem bantu e talvez por isso – muito embora não possamos descartar outras razões linguístico-líricas e mesmo sociolinguísticas – começasse a utilizar como arma de guerra lírica os nomes da terra, revelando-lhes a beleza e a igualdade com a língua do colono.

Depois, subversivo e animado pela criação linguística da usa lira como preconizava o romano Horácio na sua Arte Poética há mais de dois mil anos, cria neologismos luso-bantu e mais especificamente luso-rongas (língua da sua mãe) dando, assim, à língua portuguesa uma mais larga expressão lírico-semântica, mais força telúrico-poética, enfim mais universalidade.

E o poema a «Fraternidade das Palavras» é um hino ilustrativo do que acabámos de dizer e do que afirmámos até agora sobre os lexemas bantu e neologismos luso-rongas em que Craveirinha começando a cantar que «O céu / é uma m’benga? onde todos os braços das mamanas / repisam bagos de estrelas. / e depois de acentuar que «as palavras mesmo estranhas / se têm música verdadeira / só precisam de quem as toque / ao mesmo ritmo para serem / todas irmãs/», finaliza o poema, dizendo alumbrado:

(…) E eis que num espasmo
de harmonia como todas as coisas
palavras rongas e algarvias ganguissam
neste satanhoco papel
e recombinam em poema.

(os sublinhados a negrito são nossos)

É, de facto, a resposta do poeta a todas as dúvidas sobre esta vontade de harmonia com as formas de expressão vigentes em Moçambique, que também como vaticínio se vem a concretizar no Moçambique actual que, utilizando o português como língua oficial, valoriza as línguas de origem bantu que convivem em interacção com o português em todo o território nacional.

Já que falámos de novo em vaticínios, importa ainda salientar no final desta breve introdução ao karingana deste povo e país à beira do Índico plantado, que o poeta iniciou a sua estória lírica com vaticínios de melhores dias e termina, exactamente, a sua obra como começou, ou seja, com mais vaticínios.

Num poema de grande força expressiva e de cariz épico como é o «Sia-vuma», que se pode traduzir por «assim seja» é a forma das pessoas concordarem com as verdades vaticinadas pelos nyangas (curandeiros-adivinhos) o poeta ciente do final da luta vitoriosa pela independência – O Grande Dia – canta destemido e peremptório:

(…) E à propaganda deste abecedário
inoxidáveis ao medo
levantemo-nos ao acitileno das palavras
insurrectas em massa
SIA-VUMA!

E deixem em nós gerar-se
irresistível a prole das sementes do beijo
consanguíneo do grande dia
SIA-VUMA!

Que um enxame de mãos em prece
na orgia fantástica dos augúrios do nhanga
há-de voltar deste exílio
mais moçambicano connosco
SIA-VUMA!

Portanto, era uma vez um povo, era uma vez um poeta cuja voz se confundia com a história do país. Phu Karingana!

Calane da Silva

(Maputo – Abril – 2008)

[1] Karingana wa Karingana é a expressão que os rongas utilizam para iniciar as histórias tradicionais (xihitane) e que corresponde ao «era uma vez» das narrativas luso-ocidentais. O narrador começa a história dirigindo-se ao grupo ouvinte dizendo precisamente «karingana wa karingana!» e o público responde em uníssono: «karingana!». No final da narrativa, o contador de histórias tradicionais diz «Phu karingana!».
[2] Tintlholo é o conjunto de búzios, ossinhos e mesmo pedrinhas que o nyanga (curandeira/o) ou nyamussoro (feiticeiro/a) atira para a esteira e servem para adivinhar, de acordo com a maneira como esse conjunto de elementos se espalha, a capacidade mediúnica do adivinho.
[3] Ver nota de rodapé número 4 sobre a questão da grafia do título da obra e de alguns poemas com a mesma expressão.
[4] Aqui respeitamos a grafia do poeta na primeira e segunda edição, ou seja, quando escreve «ua» em vez de «wa» como o faz autor desta introdução que obedeceu aos cânones da grafia bantu, quer neste trabalho quer noutras suas obras como, por exemplo, O Estiloso Craveirinha (2002), Maputo, edição da Imprensa Universitária (273 pág.).
[5] Esta tendência épica da segunda obra de José Craveirinha, Karingana ua Karingana, assim como o processo metafórico ali patente e que se singulariza também em processos linguísticos morfo-sintácticos e semânticos, foi e está bem estudado e investigado pela professora luso-moçambicana da Universidade Clássica de Lisboa, Ana Mafalda Leite, na sua obra A Poética de José Craveirinha (1991), editada, em Lisboa, pela Vega.
[6] Esta questão foi exaustivamente investigada nos seus vários domínios na obra do autor deste texto, O Estiloso Craveirinha (2002), editado em Maputo pela Imprensa Universitária.